A anatomia do plenário: Como um espaço físico pode moldar o poder político
Feche os olhos por um momento. Imagine-se entrando no plenário da Câmara dos Deputados em Brasília. À sua frente se ergue um hemiciclo1 imponente, bancadas dispostas em semicírculo, uma mesa diretora elevada, galerias superiores onde cidadãos observam silenciosamente através de vidros.
Cada elemento desta arquitetura não está ali por acaso. Eles moldam, de forma quase imperceptível, como o poder político funciona.
A geografia invisível do poder
“O plenário é soberano.” Você já ouviu essa frase inúmeras vezes. Mas a verdadeira soberania começa muito antes das votações: ela nasce na disposição física do espaço.
Não é coincidência que chamamos políticos de “direita” e “esquerda”. Essa divisão nasceu literalmente do posicionamento de cadeiras durante a Revolução Francesa, quando deputados partidários do rei sentavam-se à direita do presidente da Assembleia Nacional, enquanto os revolucionários ocupavam sua esquerda. Mais de 230 anos depois, essa geografia política ainda ecoa em parlamentos pelo mundo.
Inclusive em algumas casas legislativas, quando um deputado “muda de lado” politicamente, frequentemente muda de lugar fisicamente no plenário. A arquitetura registra a política e a política espelha a arquitetura.
Estudo conduzido pela firma XML ArchitectureE analisou os plenários dos 193 parlamentos nacionais do mundo e revelou que, apesar de culturas, línguas e histórias distintas, praticamente todos os parlamentos se organizam em cinco tipologias espaciais: o semicírculo, as bancadas opostas, o ferradura (horseshoe), o formato de sala de aula e o círculo.
A escolha por uma ou outra forma reflete não apenas gosto estético, mas valores políticos fundamentais. O semicírculo, por exemplo, estimula consenso e remete ao teatro grego e romano – ícones de democracia. Já o modelo britânico de bancadas opostas estimula o embate, nascido da divisão aristocrática entre nobres e clérigos. Em muitos países da Commonwealth, optou-se pelo formato híbrido do ferradura, enquanto o formato circular é raro e simboliza igualdade plena
O poder dos espaços
Observe os detalhes: a mesa diretora elevada confere autoridade visual a quem a ocupa. As galerias superiores colocam literalmente o povo “por cima” dos representantes, mas o vidro que eventualmente os separa lembra quem tem voz e quem apenas observa.
O formato semicircular facilita o diálogo, mas também expõe cada parlamentar ao olhar de todos os outros e das câmeras.
Cada centímetro foi pensado para facilitar ou restringir certos comportamentos. A acústica permite que sussurros se espalhem rapidamente pelas bancadas – as famosas “fofocas de plenário” que frequentemente decidem votações. A disposição das cadeiras cria alianças naturais entre quem senta próximo.
Como já dizia Winston Churchill: “nós moldamos nossos edifícios e depois nossos edifícios nos moldam”. Após o bombardeio que destruiu o plenário da Câmara dos Comuns em Londres, Churchill fez questão de reconstruí-lo no formato tradicional de bancadas opostas. Ele rejeitou a ideia de adotar o hemiciclo europeu, pois acreditava que a proximidade e o confronto direto fortaleciam a democracia parlamentar britânica
O mito da soberania absoluta
MMas aqui está o paradoxo que poucos percebem: por mais imponente que seja, o plenário não é verdadeiramente soberano.
Mesmo que todos os parlamentares de uma nação votassem por unanimidade, existem limites intransponíveis. Constituições estabelecem cláusulas pétreas que nem os próprios legisladores podem modificar. Cortes constitucionais podem anular decisões unânimes se elas violarem princípios fundamentais.
A soberania do plenário, tão decantada em discursos ao redor do mundo, esbarra nas regras superiores que estruturam as democracias modernas. É como um teatro majestoso onde os atores podem improvisar, mas nunca fugir completamente do roteiro.
A anatomia revelada
O que descobrimos ao dissecar este espaço? Que arquitetura é política cristalizada. Cada elemento físico do plenário, desde a disposição das cadeiras até a altura das galerias, reflete escolhas sobre como o poder deve ser exercido, controlado e limitado.
E talvez o dado mais surpreendente: apesar das revoluções tecnológicas e sociais do último século, os plenários mudaram pouco desde o século XIX.
O conservadorismo espacial contrasta com as mudanças velozes da política digital. É tempo de repensar também a arquitetura da democracia, já que há participação remota e também outros pontos de vistas dentro do plenário, surgida da interação dos parlamentares nas redes sociais.
Alguns países já começaram esse movimento. O novo parlamento do Zimbábue, por exemplo, incorpora elementos das aldeias tradicionais e homenageia a herança natural e cultural do país.
Já na Austrália, a decisão de construir o Parlamento ao nível do solo, e não sobre um monte, expressa um gesto simbólico: o governo deve estar no mesmo plano do povo, como um convite à participação democrática.
O próximo passo? Da próxima vez que assistir a uma sessão plenária, observe não apenas o que está sendo dito, mas onde cada pessoa está sentada, como se movimenta, para onde olha.
Você estará vendo a democracia em sua forma mais pura: um delicado equilíbrio entre poder e limites, materializado em concreto, mármore e história.
Avisos e proclames
O texto da edição de hoje surgiu em um sonho onde o plenário estava invertido, as galerias ficavam embaixo.
O livro Regimentos Parlamentares do Mundo: Sistemas Jurídicos e Ação Legislativa, da ALMG e da UFMG, mostra uma série de design de parlamentos.
Ao comentar sobre esse tema com o amigo
, ele me mostrou o livro Parliament, de David Mulder van der Vegt e Max Cohen de Lara, que acabou influenciando o post, se alguém quiser me presentear, agradeço.Participei do podcast Na Mesa de Negociação, do amigo Eduardo Mello. O tema foi reforma tributária, com Gustavo Nahsan. Assista ou escute.
Vale o clique
Houve a primeira eleição para magistrados no México, somente 13% do eleitorado apareceu e quem foi reclamou da dificuldade para votar em tantas opções.
Qual deve ser o tamanho da Câmara dos Deputados no Brasil? Bruno Bolognesi responde que pode ser mais do que você imagina.
O Fred Perillo tá mandando bem (além do post abaixo, tem esse daqui também):
O podcast Rádio Novelo veio com duas edições seguidas muito pertinentes (boas sempre são): uma sobre os bastidores do mensalão; e outra sobre as cartas enviadas na constituinte (nesse edição também há a reprise de uma história da
).O citado Apresenta sobre a cartas da constituinte relembrou uma reportagem linda sobre o tema, a Constituição dos Sonhos. Nela há possibilidade de pesquisar as cartas e perdi um tempo lendo as cartas que foram enviadas da minha cidade (e encontrando até alguns nomes conhecidos).
Plenário: Revista Jurídica da Câmara dos Deputados.
O Jota não precisa de propaganda, mas a nova newsletter deles tá boa.
Lembrando da nossa edição sobre leis esquisitas (e também desta reportagem):
Um voto de confiança às assessorias parlamentares, por Francisco Santos Alvares.
Já ouviu falar de ilusão tributária? Boa explicação da Duquesa de Tax.
Dois casos de impacto legislativo envolvendo imóveis e tributação.
Vizinhança
Quinze por Dia, ou simplesmente QPD, é uma newsletter quinzenal com histórias, pensamentos e indicações sobre temas ligados ao Poder Legislativo, política e afins, por Gabriel Lucas Scardini Barros. Estou à disposição para conversar no Instagram @gabriel_lucas. Caso tenha recebido esse e-mail de alguém ou chegou pelo navegador, siga esse link para assinar.
Descobri essa palavra ao preparar a edição, significa qualquer estrutura ou espaço semicircular.
Como admiro e respeito seus talentos menino bonito.vc é o reflexo desse país tão desigual e injusto em que vivemos. Mas vc tem luz, muita luz a nos presentear com a magia do conhecimento. Gratidão. Te amo muito. Quero tudo de melhor em sua vida. Bjs