Sete anos sem refrigerante e uma reforma tributária
Uma lei pode fazer você consumir alimentos mais saudáveis?
Dizem as pessoas que param de beber refrigerante se tornam muito chatos e não perdem a oportunidade de avisar sobre esse comportamento. Posso garantir que é a mais pura verdade, pelos menos quando isso se diz respeito a mim.
Meus pais pararam de fumar logo antes do meu nascimento e quando fui me tornar pai, pensei qual seria a atitude similar ao que meus pais tomaram.
Então, no dia nove de dezembro de 2015, horas antes do nascimento da minha filha, tomei um restinho de refrigerante sem gás que havia na geladeira. Um até logo que já dura mais de sete anos.
O consumo de bebidas com alto teor de açúcar só aumenta e não está restrito aos refrigerantes, inclusive por que as empresas introduzem novos tipos de produtos no marcado já cientes da rejeição crescente aos refrigerantes (algo parecido com o que aconteceu no surgimento dos cigarros eletrônicos).
Na ocasião da aprovação da Reforma Tributária na Câmara Federal1, em meio a um turbilhão de notícias, notei menções sobre o imposto do pecado ou imposto seletivo no meio das inovações da reforma.
A ideia é criar a possibilidade de existência de alíquotas de imposto diferenciadas para alguns tipos de bens e serviços, a fim de servir como um incentivo indireto, aumentando o custo visando a mudança de um hábito. Uma espécie de indução no comportamento da sociedade.
Além de desestimular o consumo por meio de preços maiores, a arrecadação extra poderia ser utilizada para amenizar os custos causados pelos malefícios destes “pecados” (na saúde pública, por exemplo).
Os alvos primordiais desse tipo de medida sempre foram o álcool e o cigarro, mas não é novidade que bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados também passaram a ser alvos dessas medidas.
Parece uma ideia brilhante, afinal, o aumento de um imposto diminuiria o consumo de refrigerantes, com a consequência de diminuir a obesidade na população, mas existem alguns pontos polêmicos.
Antes da polêmica, uma olhada em como está essa parte na reforma tributária.
No texto original da PEC da Reforma, a proposta era assim:
Art. 154. .................................................................... ...................................................................................
III – impostos seletivos, com finalidade extrafiscal, destina- dos a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos.”
No texto final, aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado, o dispositivo virou algo diferente, com menção expressa à saúde ou ao meio ambiente:
Art. 153. ............................................................... ...............................................................................
VIII – produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei.
Nem todo refrigerante é o mesmo refrigerante e, como sempre, esse tipo de problema não é simples de ser resolvido.
Grandes empresas produtoras de refrigerante e de bebidas alcoólicas se estabelecem na Zona Franca de Manaus e conseguem benefícios fiscais desproporcionalmente maiores do que as fábricas locais, sejam elas daquela tubaína regional ou de uma cervejaria artesanal. Esse benefício da zona franca permanece na proposta de reforma tributária.
Nessa questão acima, um imposto maior para os refrigerantes teria impacto diferente em empresas do mesmo segmento, sem conseguir de fato diminuir o consumo de bebidas açucaradas.
Outra questão são os hábitos de consumo dos brasileiros, que mudaram com o passar do tempo.
No passado, as classes de renda mais baixa consumiam uma dieta mais saudável, como o famoso prato brasileiro de arroz e feijão. Com o aumento da renda, o consumo de ultraprocessados e refrigerantes aumentou.
Hoje a situação mudou, bebidas açucaradas e alimentos industrializados acabam sendo mais baratos que produtos menos processados (como frutas e hortaliças, por exemplo), e, assim, o consumo dos produtos mais saudáveis pela população de renda mais baixa diminuiu. O que seria uma justificativa para aplicação do imposto seletivo.
No fim das contas, apesar de considerar o hábito saudável, sete anos sem refrigerante não me deixaram mais magro e a reposta disso é o mesmo problema do imposto seletivo.
Pois trata-se de uma medida que pode até funcionar, desde que seja aplicada como parte de uma série de iniciativas.
Nunca como uma solução mágica para o problema.
50 vezes QPD
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No Jota: Competência municipal para legislar sobre concessões, o caso da caso da ADPF 282.
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