Mais que lero-lero: a fundamentação das propostas legislativas
Toda proposta legislativa deve ser justificada. Um projeto de lei deve explicar o porquê da proposta de alteração do nosso já inchado arcabouço legislativo.
Muito antes de pensar em escrever projetos com ajuda da inteligência artificial, o primeiro uso para os GPTs era a criação de justificativas para propostas legislativas.
Era o gerador de lero lero perfeito. Basta colar o conteúdo normativo e pedir uma justificativa que a magia acontecia.
Mas isso é o bastante?
A fundamentação dos projetos legislativos, em regra, é uma previsão dos regimentos internos1, sem muito detalhamento de como a justificação deve ser realizada.
A Emenda Constitucional nº 95, de 2016 inovou ao prever que a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.
Muitas vezes esse preceito constitucional é ignorado, mas recentemente, a liminar do STF que suspendeu a desoneração da folha2 se baseou nesse dispositivo. O Ministro Zanin afirmou que:
É possível dizer, a partir da inclusão do art. 113 no ADCT que, atualmente, o controle do crescimento das despesas faz parte do devido processo legislativo.
Os projetos de lei têm sido instruídos com esse impacto?
E por falar em devido processo legislativo:
Em síntese, idealmente o princípio da deliberação exige a apresentação de razões de natureza pública jurídicas, políticas, econômicas, morais e sociais as mais profundas possíveis sobre cada modificação normativa colocada em debate no processo legislativo. Não obstante, há, de um lado, uma série de limitações informacionais, cognitivas e de tempo para tanto e, de outro, exigências do princípio da eficiência do devido processo legislativo para que uma solução a um problema coletivo seja definida em tempo hábil e com os recursos e informações disponíveis.
Dessa forma, deve-se entender atendido o princípio da deliberação no caso de apresentação de argumentos de natureza pública capazes de justificar as principais modificações normativas adotadas na via legislativa - sendo a profundidade dessas razões relevante para determinação do grau de deferência para com a decisão legislativa no momento de seu controle judicial, como será visto.
O trecho acima é do livro Devido Processo Legislativo, de autoria de Victor Marcel Pinheiro, consultor do Senado.
Mas como melhorar a justificativa das proposituras?
A doutora Ana Paula de Barcellos, em seu livro Direitos fundamentais e direito à justificativa, defende os eixos mínimos da fundamentação: o problema que a iniciativa legislativa deve enfrentar; os impactos esperados pela medida proposta, e; os custos dessa medida.
Utilizando a ideia do Victor Marcel, uma boa forma de estruturar a justificativa é em eixos, onde os vários questionamentos de uma proposta legislativa podem ser endereçados:
Eixo Jurídico
Primeiro em nossa lista, mas que pode muito bem figurar no final da justificativa, vale atentar para a conformidade com a Constituição, com o ordenamento jurídico e com o regimento interno.
É o momento de preparar uma defesa contra possíveis alegações e também de citar legislações semelhantes em outras unidades federativas ou decisões judiciais que declararam a constitucionalidade de normas semelhantes.
Eixo Político
Quando se fala em política, é a hora de abordar o apoio que o projeto terá, o que pode ser consubstanciado com ofícios da sociedade civil organizada, por exemplo.
Também é o espaço para consignar questões político-partidárias e aspectos ideológicos.
Eixo Econômico
A parte econômica da justificativa pode ir muito além do já citado art. 113 do ADCT e do impacto orçamentário da nova norma.
É o momento para falar da Avaliação de Impacto Legislativo e mostrar que essa proposta legislativa será efetiva e eficaz para solucionar as questões que se propõe.
Hora de colocar a economia comportamental na proposta.
Eixo Moral
A adequação da proposta com a ética pública, mostrando como a proposta pode ser aplicada com integridade e moralidade.
Nesse contexto, é importante demonstrar como a proposta pode melhorar a governança, transparência e prestação de contas para a sociedade.
Eixo Social
O grande debate de mérito de uma proposta normativa é qual o interesse público nessa proposta. Qual a razão de a sociedade precisar de mais uma norma no ordenamento jurídico?
A proposta legislativa também é uma forma de comunicação entre o mandato e a sociedade (essa questão foi tema de uma edição da QPD).
Esse espaço também pode ser utilizado para registrar formalmente quem pediu o projeto de lei, o nome de estudiosos que serviram como referência para a proposta e até mesmo de veículos de imprensa cujas notícias serviram de ideia para a apresentação do texto.
Os exemplos demonstram como um projeto de lei pode ser fundamentado em diversas dimensões, considerando vários aspectos do interesse público.
Nota-se também que os próprios pareceres de comissão e a manifestação social podem ajudar a complementar a justificativa inicial de cada projeto.
Infelizmente, a realidade da maioria dos legisladores brasileiros é a falta de estrutura, o que resulta em grande prejuízo informacional na hora de fundamentar as propostas legislativas.
Vale muito adaptar o anexo único do decreto n° 12.002/2024, que trata das questões a serem avaliadas previamente à elaboração de atos normativos no âmbito do Poder Executivo Federal.
Finalmente, a justificação durante a apresentação da proposta legislativa é apenas um começo, o próprio processo legislativo tem como objetivo prover de validação e informação à proposta inicial, por meio dos pareceres, debates e participação da sociedade.
Preciso destacar que o citado livro Devido Processo Legislativo, é uma obra que já se tornou uma das minhas grandes referências, ao lado do Processo Legislativo Constitucional, do doutor João Trindade e do Técnica Legislativa: Legística Formal, do doutor Kildare Gonçalves Carvalho.
Outras edições da QPD tratarão de temas surgidos nessa leitura.
A edição foi movida do dia 27 para o dia 29 em razão do newsletteraço. Se você assina a QPD, já tem uma conta no Substack. O movimento é um convite a conhecer outros escritores brasileiros da plataforma:
1. Kali de los Santos - kaligrafias
2. Rafaela A. Quevedo - Surtos de uma Escritora
3. Fernando Alves - Futebol no fim do Mundo
4. Mia Sodré - Querido Clássico
5. Victória - resenhas que ninguém pediu
6. Thainá - Sentimentalizar
7. João Aguiar - Mil Palavras
8. Stéfane Goulart - Depois que tocar
9. Gabriel Barros - Quinze por dia (essa é importante assinar; hahaha)
10. Danilo Heitor - Antes do fim
11. Sofia Osório de Castro - Caderneta
12. Ana Carolina Dantas - Crônicas do Bloco de Notas
13. Carol Vidal - Devaneios Criativos
14. Fernanda Chazan - Escrevendo no Escuro
15. Lethycia Dias - Uma mulher que escreve
16. Angelo Dias - Cronofobia
17. Natasha Guerrero Moreno - Regougando
18. Rafael Juck - Desmanche Fantástico
19. Cristiane Helena Corrêa - Armário de Aromas
20. Geo Amaral - Georama
21. Karine Canal - Kverso
22. Luciana Florenzano - Disso eu sempre me lembro
23. Saskia Sá - Cartas Náufragas
24. Rodrigo vK
Essa é uma iniciativa que surgiu no grupo de newsletters no Telegram.
Vale o clique
Um baita estudo: QUEM SE TORNA CONGRESSISTA? o impacto das alterações legais na composição da Câmara dos Deputados (2002-2022), por Humberto Dantas, Bruno Silva e Cláudio André de Souza.
E já que falamos no Decreto n° 12.002/2024, a Centro de Estudos Jurídicos da Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos (SAJ) da Presidência da República fez uma apresentação muito interessante, com comparativo com o decreto anterior.
Eduardo Bueno conversa com Pedro Dória sobre o desastre no Rio Grande do Sul.
Preciso contar um segredo, na última edição do BBB, olhava as prévias do Votalhada e pensava que poderia ter algo assim para as eleições “reais”: Polling Data faz esse papel de reunir pesquisas e ter muita informação.
A
é uma das minhas newsletters preferidas, recentemente destaco eles tiveram duas edições muito boas: um balanço dos 12 anos da lei de acesso à informação e um resumo da dívida dos estados com a União, cujas revelações podem ser surpreendentes.A
declara seu amor ao Congresso Brasileiro (como é bom ver mais legislativo aqui no Substack).STF em duas notícias interessantes: STF proíbe questionamentos sobre histórico de vida da mulher vítima de violência.
Foi em Taiwan, mas poderia ser perto de você? Deputado governista foge com projeto de lei para impedir aprovação.
O uso da linha pontilhada em proposições legislativas e em leis, a monografia de Marcela Domingos de Albuquerque.
No Linkedin, o Rafael Cardoso Sampaio fez uma compilação de formações grátis em Ciência Política.
A coleção Sabichinhos é uma série de livro que aborda temas complexos de forma leve para crianças. Eleição dos Bichos é sobre democracia, mas na coleção há histórias sobre luto e privacidade. A versão digital das obras é grátis.
Educast, o podcast do CEFOR, a Escola da Câmara dos Deputados.
CADERNOS DE JURISPRUDÊNCIA: Os Direitos Autorais no Supremo Tribunal Federal.
Vizinhança
Quinze por Dia, ou simplesmente QPD, é uma newsletter quinzenal com histórias, pensamentos e indicações sobre temas ligados ao Poder Legislativo, política e afins, por Gabriel Lucas Scardini Barros. Estou à disposição para conversar no Instagram @gabriel_lucas. Caso tenha recebido esse e-mail de alguém ou chegou pelo navegador, siga esse link para assinar.
Essa história é explicada e debatida em um episódio do podcast Sem Precedentes.
Amei a ideia no Newsletteraço!
O que é o Newsletteraço?