Reinheitsgebot: o impacto cultural da lei da pureza da cerveja
Você já deve ter visto a denominação “Puro Malte” em uma cerveja.
Em meios informais, a cerveja puro malte seria melhor pois um de seus ingredientes seria apenas o malte de cevada.
Havia até uma definição legal que seria a cerveja com cem por cento de malte de cevada, em peso, sobre o extrato primitivo, como fonte de açúcares. Mas isso foi revogado1.
Antes dessa revogação, se uma cerveja recebesse a adição de uma fruta, por exemplo, ela deveria ser comercializada sob o nome “bebida alcóolica mista”.
Essa exaltação da cevada malteada na cerveja é reflexo de outra lei. Uma lei editada em 1516, na Baviera.
Essa lei é a Reinheitsgebot e ficou conhecida como a Lei de Pureza Alemã, apesar de ser mais antiga que a Alemanha.
Como é a Lei da Pureza?
A Reinheitsgebot foi editada por William IV, duque da Baviera, com o objetivo de regular o mercado sob o preceito de garantir a qualidade e a pureza da cerveja, além de evitar fraudes e adulterações. Isso em um tempo que beber cerveja muitas vezes era mais seguro do que beber água.
A lei original permitia apenas três ingredientes na produção de cerveja: água, cevada (malte de cevada) e lúpulo. O fermento foi posteriormente adicionado à lista de ingredientes permitidos, após a descoberta de seu papel no processo de fermentação.
Vale lembrar que outras escolas cervejeiras, como a Belga, usam adjuntos, outros grãos além da cevada e no passado, nem o lúpulo era usado.
O texto da lei (traduzido a partir de uma publicação da Biblioteca do Congresso Estadunidense):
Em particular, decretamos que, doravante, em nossas cidades, mercados e no campo, nada além de cevada, lúpulo e água deverá ser usado para fabricar cerveja.
Qualquer pessoa que violar conscientemente este decreto será punida pelo tribunal com a remoção de cada um desses barris de cerveja de sua posse.
Essa norma é frequentemente citada como a mais antiga lei de segurança alimentar ainda em vigor. Embora a versão original tenha sido alterada ao longo dos anos, especialmente com a inclusão do fermento e a permissão de outros cereais além da cevada em certas circunstâncias, o espírito da lei continua a influenciar a produção de cerveja na Alemanha e em muitas outras localidades.
Nos dias de hoje, muitas cervejarias ainda seguem os princípios da Reinheitsgebot, mesmo que a lei em si tenha sido substituída por regulamentos modernos da União Europeia que permitem uma maior diversidade de ingredientes.
A adesão a esses princípios é frequentemente usada como um argumento de marketing para enfatizar a pureza e a tradição das cervejas alemãs.
Mas por outro lado, há uma série de questões de fundo na lei:
Controle do Mercado de Grãos: Uma das motivações principais era o controle do mercado de grãos. A lei restringia o uso de trigo e centeio na produção de cerveja, reservando esses grãos para a produção de pão. Isso ajudava a garantir o abastecimento de alimentos básicos e a estabilizar os preços desses grãos.
Monopólio das Cervejarias: A lei beneficiava alguns cervejeiros já estabelecidos. Pequenos produtores e estalajadeiros foram retirados do mercado pois utilizavam outros ingredientes (como ervas e especiarias).
Receita Fiscal: Ao padronizar a produção, facilitava-se a taxação.
Portanto, embora a Lei da Pureza seja frequentemente celebrada como uma lei pioneira de proteção ao consumidor, ela também serviu a vários interesses econômicos e políticos das autoridades da época.
Quais as lições que um legislador contemporâneo pode tirar da Reinheitsgebot?
Estamos nos anos 20 do século XXI e você está lendo sobre uma lei com mais de 500 anos cujos preceitos são aplicados em países fora de sua jurisdição. É um grande caso de sucesso e de impacto cultural.
A definição legal bávara ajudou a fixar a receita da cerveja, um líquido amplamente consumido no mundo e que, no Brasil, significa um comércio de 112 milhões de hectolitros em 2023.
Mas, além do impacto cultural, a Lei da Pureza mostra que, por trás de um tema principal de norma, pode haver uma série de questões transversais fundamentadas por diversos interesses.
Como dia 06 de junho é o Dia da Cerveja Brasileira, esta newsletter procura falar de cerveja artesanal todo mês de junho. Tudo começou com essa história aqui:
Chevron Deference: conheça antes que acabe
Em 1984, a decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc. forneceu aos tribunais federais um processo de duas etapas para revisar a interpretação de um estatuto por uma agência:
Primeiro, o tribunal verifica se o Congresso expressou claramente sua intenção no estatuto. Se a intenção for clara, as agências devem segui-la. Se a intenção for ambígua ou ausente sobre um ponto específico, o tribunal decide se a interpretação da agência é permissível, desde que não seja arbitrária ou contrária ao estatuto.
Na segunda etapa, o tribunal avalia a razoabilidade da interpretação da agência. Se o Congresso deixou a ambiguidade explicitamente, os regulamentos da agência são obrigatórios, a menos que sejam arbitrários ou contrários ao estatuto. Se a ambiguidade foi implícita, o tribunal não pode substituir sua interpretação pela da agência, desde que a interpretação da agência seja razoável.
Este processo respeita a expertise técnica das agências ao seguir a intenção do Congresso. Mas isso pode mudar diante da possibilidade de uma nova interpretação da Suprema Corte, nesse caso a responsabilidade se voltaria para um congresso já dividido e quase inoperante.
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Quinze por Dia, ou simplesmente QPD, é uma newsletter quinzenal com histórias, pensamentos e indicações sobre temas ligados ao Poder Legislativo, política e afins, por Gabriel Lucas Scardini Barros. Estou à disposição para conversar no Instagram @gabriel_lucas. Caso tenha recebido esse e-mail de alguém ou chegou pelo navegador, siga esse link para assinar.
Hoje a definição legal de cerveja é: Cerveja é a bebida resultante da fermentação, a partir da levedura cervejeira, do mosto de cevada malteada ou de extrato de malte, submetido previamente a um processo de cocção adicionado de lúpulo ou extrato de lúpulo, hipótese em que uma parte da cevada malteada ou do extrato de malte poderá ser substituída parcialmente por adjunto cervejeiro (Decreto 9902/2019).
Adoro a história por trás das lei. E também o termo "estalajadeiros", muito medieval.
Parabéns pela carta de hoje.